Sarah inspira e expira, para depois abrir a porta. Victor
está sentado no sofá, assistindo alguma coisa com gritos sofridos e
derramamento de sangue que ela não tenta descobrir o que é. Ela faz silêncio e
o observa. Estão juntos há cinco meses e essa seria a primeira discussão em que
ela estava mesmo empenhada em ganhar. Brigar com ele partia seu coração em mil
pedaços, mas como uma mulher de poucas palavras e muitas ações, Sarah tinha que
dizer todas elas. Ela coça a garganta e Victor levanta a cabeça em sua direção
e sorri. Isso torna tudo mais difícil.
Quando está com ele, Sarah deixa todo o resto de fora. O
aluguel atrasado não parece importante, os pais negligentes se tornam distantes
e a correria na faculdade se transforma em um resort. Tudo parece mais bonito e
leve, como se ela estivesse sentada na cela de um cavalo, girando sobre um
carrossel que entoa uma música alegre. Ele era seu porto seguro, seu lugar
secreto, sempre pronto para tomar suas dores e sorrisos como dele.
Sarah reprime o sorriso e engole seco. Comprime os lábios e
deixa a bolsa cair no chão. Victor a conhecia melhor do que qualquer outra
pessoa, embora tenha tido menos tempo do que a maioria. Em sete meses ele já
havia desvendado todos os seus sorrisos e todos os seus olhares. Sua expressão
naquele momento não foi mistério nenhum para ele. Victor franziu os olhos para
ela e, com o controle na mão, desligou a TV. Os gritos tortuosos que preenchia
o lugar cessam.
— O que foi? — ele diz e sua cabeça pende para o lado
enquanto a observa até que ela chegue a sua frente.
— Você intimidou o Renan. — As palavra saem devagar, quase
como uma pergunta. Tinha decepção grudada em cada letra, como chiclete
emaranhado ao cabelo. — Você disse a ele para ficar longe de mim.
Victor abriu a boca, mas não disse nada. Não parecia saber o
que dizer. Ao invés disso, entrelaçou os dedos e os levou até a nuca, os olhos
longe de Sarah. Tudo ficou em silêncio. Ficou tão quieto que o relógio na
parede se fez audível. Tic tac. Tic Tac.
Sarah bufou. Ficar calado não era do feitio dele. Então ele
voltou a olhar para a namorada, seus olhos cheios de significado. Aqueles olhos
diziam que ele a amava, diziam que para cada erro que ele cometia, ele a amava
cinco vezes mais. Era a primeira vez que ela via esses olhos de quem sabia que
fez algo errado. Só não via nenhum outro sentimento além de amor. Não via a culpa que aparece sempre
que alguém é pego no flagra.
— Eu não o queria perto de você — fala ele, dando de ombros
como se não houvesse jeito de ter evitado afastar uma pessoa de Sarah.
Sarah inspira e fala com calma. Não havia sentido em perder
a cabeça, ela só precisava fazê-lo enxergar o seu ponto de vista para que ele
entendesse que aquilo não era certo. Nem saudável.
—Você não tem o direito de decidir isso, eu não te pediria
para ficar longe de suas amigas.
Ele não tinha muitas, era verdade. Desde que começaram a
namorar, todas as garotas que o rodeavam foram desaparecendo aos poucos, até
que sobraram as namoradas dos seus amigos e, eventualmente, as amigas das
namoradas dos amigos.
—Nunca te dei motivos para duvidar de mim.
Sarah arqueja com o golpe.
— E eu te dei? — contra-ataca ela, elevando a voz.
Ele não responde diretamente. Levanta-se do sofá e fica de
frente para ela, que se afasta alguns passos para longe dele. Não queria estar
ao alcance de um abraço ou um beijo roubado. Queria estar tão longe que suas
mãos não chegariam até ela, porque se ele a tocasse, ela deixaria que as
lágrimas viessem à tona. Nunca passou por sua cabeça que ele desconfiasse dela,
nunca imaginou que tivesse espaço para dúvidas em seu relacionamento.
—Eu só não quero te perder. Só disse para ele ficar longe
porque sempre que está com ele parece que está mais longe de mim.
Sarah assentiu para si mesma.
— É só isso que tem para dizer? Nada mais?
—O que você quer que eu diga?
— Sua justificativa não substitui um pedido de desculpa.
Quero que peça desculpas e quero que diga que não fará mais isso.
— Não me sinto culpado. Não me arrependo, Sarah.
—Eu não te entendo — ela ri em seu nervosismo. — Nunca te
dei motivo para duvidar dos meus sentimentos. Por que essa desconfiança?
Ele olha para ela como quem analisa o terreno, imaginando se
está pronta ou não para o que irá dizer. É então que Sarah nota suas pálpebras
mais baixas, seus lábios curvados em algo que passeava entre a linha da
tristeza e da timidez.
— Você nunca disse, Sarah — diz ele, balançando a cabeça
negativamente.
Sarah sabia que ele estava se forçando a manter o contato
visual. Concentrou-se ainda mais em tentar descobrir o que havia por trás
daquele brilho de mágoa.
— Eu não disse o que?
— Que me ama — diz ele, sem hesitação, olhando nos olhos
dela. — Você nunca disse.
Sarah se aproxima, mas não tanto. Agora está ao alcance de
um abraço, mas sabe que Victor não fará nada. Este é um momento decisivo na
relação, ambos sabiam disso.
— É por isso que tem medo? Nosso relacionamento se resume a
essas palavras?
— E você não acha que essas palavras são importantes? Eu disse
que te amo. Isso é importante para
mim, para você não? Você é importante para mim. Poucas coisas na minha vida tem
valor, mas você é o que mais brilha. É o que tenho de mais valioso. Não vou
pedir desculpa — ele nega novamente.
Sarah pisca e absorve as palavras.
— Eu sempre corro para você, Victor. O tempo inteiro. Eu vou
para o trabalho pensando em você, e quando saio pego o caminho da sua casa. Compro
comida pensando no que você gosta e fiz um estoque de amostras grátis daquele
perfume caro só porque você me achou especialmente cheirosa no nosso
aniversário de três meses. E de noite conversamos por mensagem, mas tudo o que
eu quero é ouvir a sua voz, mesmo que tenhamos passado todo o dia juntos. Você
não precisa que eu diga que te amo. Não quero que precisemos disso, porque
palavras são vazias.
Victor tem os olhos mais brilhantes que Sarah já viu. Suas
íris eram da cor do mel e da folha seca e brilhavam ainda mais neste momento,
quando seus olhos lacrimejavam. Aquilo era algo novo.
— Você não vai dizer — diz ele, assentindo para si mesmo.
Parecia resignado, mas não de todo infeliz.
— Não vou.
Ele continuou a assentir, mas dessa vez a olhava nos olhos.
E o coração de Sarah se parte em mais mil pedaços.
— Mas você me ama.
Ele a encarou e Sarah tentou sorrir. Teve a sensação de que
falhara, mas continuou.
— Sim. Com tudo o que eu tenho.
— Tudo bem. Tudo bem — murmurou Victor.
Então estendeu a mão e puxou Sarah para si, envolvendo-a em
seus braços. Para Sarah aquilo era como voltar para casa depois de um longo
tempo fora.
Palavras são importantes, ela disse para si mesma. Ás vezes
são vazias, ás vezes são cheias de verdades, cheias de poder, como as de Victor
sempre eram. Ela sempre acreditou que não se precisa de palavras para dizer o
que deve ser dito. É reconfortante de se ouvir, mas o que sai pela boca nunca é
uma garantia. O que garante são os olhos que olham nos seus, aquelas mãos que
não largam as suas e os sorrisos que respondem aos seus.
Com todo o seu corpo e suas ações e sua mente, ela o amava.
E se antes ele não sabia, ela o faria descobrir. Porque a verdade é para ser
vista.
Palavras são importantes, mas são as ações que carregam
todos os significados.
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